Eduardo Fagnani
A agenda de reforma democrática brasileira construída a partir de meados dos anos 1970 inspirou-se na experiência europeia. Esse movimento ganhou impulso no âmago da luta pela redemocratização e desaguou na Constituição de 1988. A nova Carta restabeleceu a democracia e consagrou as bases de um complexo sistema de proteção social ancorado nos princípios da universalidade, da seguridade e da cidadania social.
De forma correta, nossos constituintes se inspiraram no modelo clássico de financiamento do Estado de bem-estar social. Observe-se que nos países europeus o financiamento da Seguridade Social é composto, em média, de 38% da contribuição dos empregadores, 22% da contribuição dos empregados e 36% da contribuição do governo. Na Bélgica e na França, a contribuição patronal é superior a 46% do total de fontes. Na Dinamarca e na Irlanda, prevalece a contribuição do governo (respectivamente, 64% e 58% do total); o mesmo ocorre no Reino Unido, Suécia e Finlândia (mais de 47%).
As recentes medidas de renúncia tributária anunciadas pelo governo corroem esse modelo clássico. A desoneração da contribuição patronal para a previdência social (20% sobre a folha de salário) e as isenções na CSLL, na Cofins e no PIS minam a sustentação financeira e ameaçam o futuro da proteção social brasileira.
Esse movimento acentua uma tendência preocupante. Entre 2006 e 2011, as renúncias fiscais passaram de R$ 79 bilhões para R$ 137 bilhões - o que representa "mais que o dobro do orçamento previsto para o Ministério da Educação" em 2011.2
Cerca de R$ 21 bilhões desse montante são isenções que afetam a Seguridade Social, concedidos às micro e pequenas empresas optantes pelo Simples, ao agronegócio e a entidades beneficentes de assistência social. Em 2011, a Previdência Urbana foi superavitária em R$ 40 bilhões. Com as renúncias, esse superávit caiu para R$ 19 bilhões.
As recentes medidas provisórias 540 e 563 acentuam essa tendência. Estima-se que as desonerações já concedidas em 2012 implicarão redução de R$ 7 bilhões da receita previdenciária. As consequências políticas são evidentes: em breve, as forças do mercado voltarão com o mantra apocalíptico de que, "sem uma nova reforma da Previdência, o país será ingovernável".
Fim do círculo virtuoso?
O objetivo do governo é ampliar a competitividade da indústria e reativar a economia. Corretamente atuou no que é central: reduziu juros e desvalorizou o câmbio. Mas, adicionalmente, está rebaixando o custo do trabalho pela redução de encargos. Esse ponto é questionável. Diversos estudos demonstram que os salários são cronicamente baixos no Brasil e que os encargos sociais estão em linha com parâmetros internacionais. Isso sem falar na elevada rotatividade da mão de obra, um perverso mecanismo utilizado pelas empresas para rebaixar salários. Observe-se que a rotatividade alcançou o mesmo patamar dos mais de 10 milhões de empregos criados nos últimos anos.3
O plano em marcha será aprofundado. Segundo a imprensa, o governo adotará novas medidas cujo foco será "a redução do custo do país". A "desoneração tributária será geral", avisou a presidente da República.4
A partir de 2007 procurou-se conjugar crescimento e inclusão social. A melhoria do mercado de trabalho e a recuperação do valor real do salário mínimo impulsionaram as receitas fiscais, incrementando as contas públicas e reduzindo as restrições para o gasto social. Ampliou-se percepção de que o gasto social pode ser um elemento estratégico para incentivar o desenvolvimento.5
O crescimento e a melhoria do mercado de trabalho fortaleceram as fontes de financiamento da Seguridade Social. O aumento do valor dos benefícios atrelados ao salário mínimo ampliou o efeito distributivo das transferências monetárias da Seguridade Social. Observe-se que, em meados de 2011, a Seguridade Social concedeu 35,8 milhões de benefícios diretos, assim distribuídos: Previdência Urbana (16,6 milhões); Previdência Rural (8,4 milhões); Benefício de Prestação Continuada aos idosos pobres e pessoas com deficiência (3,8 milhões); e seguro-desemprego (7 milhões). Cerca de 28 milhões de benefícios estão atrelados ao piso do salário mínimo e foram majorados na mesma proporção de seu reajuste.
Esse fato também contribuiu para a ampliação do mercado interno, que tem sustentado o ciclo de crescimento. Assim como os salários, o aumento real dos benefícios da Seguridade Social alimentou o círculo virtuoso de consumo, investimento, produção e geração de empregos. A anunciada "desoneração geral" ameaça a sustentabilidade financeira da Seguridade Social e poderá minar um dos núcleos do crescimento.
Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho).
Link original da matéria
1 Eduardo Fagnani, Política social no Brasil (1964-2002): entre a cidadania e a caridade, IE/Unicamp, Campinas, 2005. Tese de doutorado.
2 Ipea, Gastos tributários do governo federal: um debate necessário, Brasília, 2011. Comunicado n.117, p.8.
3 Dieese, A situação do trabalho no Brasil na primeira década de 2000. São Paulo, 2012.
4 Leandro Colon, "Dilma diz que fará desoneração ‘geral' para indústria", Folha de S.Paulo, 28 jul. 2012.
5 Ipea, Gastos com a política social: alavanca para o crescimento com distribuição de renda, Brasília, 2011. Comunicado n.75.
2 Ipea, Gastos tributários do governo federal: um debate necessário, Brasília, 2011. Comunicado n.117, p.8.
3 Dieese, A situação do trabalho no Brasil na primeira década de 2000. São Paulo, 2012.
4 Leandro Colon, "Dilma diz que fará desoneração ‘geral' para indústria", Folha de S.Paulo, 28 jul. 2012.
5 Ipea, Gastos com a política social: alavanca para o crescimento com distribuição de renda, Brasília, 2011. Comunicado n.75.
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